segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Ação e cor em Piteco: Ingá, de Shiko





Piteco: Ingá é o último álbum lançado pelo impecável projeto Graphic Msp, coordenado por Sidney Gusman. Nele, o excepcional artista paraibano Shiko adapta a história de Piteco e seus companheiros, Beleléu, Ogra e Thuga mediante uma narração mítica a respeito do nordeste. Com este inutito, o quadrinista parte das inscrições esculpidas na Pedra do Ingá, misterioso monumento arqueológico no agreste da Paraíba.
A história começa mostrando os símbolos da pedra, enquanto os recordatórios contam a origem do povo de Lem. Estes são, na verdade, o relato oral de um de seus sábios, que ensina a tradição aos seus conterrâneos em uma página dupla funcional ao enaltecer o espírito comunitário do local. A transição é genial, pois partimos dos signos da pedra, que não evocariam sentido algum se vistos de forma autônoma, apenas para entender sua real dimensão dentro da comunidade apresentada a seguir. Ao se referir ao espaço-tempo mítico, por intermédio deste personagem, Shiko está legitimando a estrutura de sua obra, visto que ela estabelece uma origem para o povo nordestino. A aventura tem início com o êxodo do povo de Lem, que deve se mudar por causa da seca e cuja jornada já é prevista pelas inscrições ancestrais. Em paralelo, Thuga, a sacerdotisa deste povo, é raptada pelos homens-tigre, o que obriga Piteco, seu amigo Beleléu e, logo depois, Ogra, a partirem em busca dela.
Na caracterização dos personagens, Shiko já revela o domínio gráfico que possui. Na primeira aparição de Piteco, por exemplo, ele aparece imponente em um plano americano frontal, mas levemente inclinado e com os braços caídos ao lado do corpo. Isso garante nossa simpatia imediata, já que revela humanidade e a bidimensionalidade que um herói complexo necessita. Além disso, a postura do herói aqui complementa a pose mais agressiva em que ele aparece em uma das capas internas da obra. Beleléu, por sua vez, é desenhado desengonçado e de olhos arregalados (p. 16), enquanto Ogra surge mal encarada, armada e com a mandíbula projetada para frente. Thuga, no entanto, é desenhada com certa sensualidade, vista geralmente de perfil ou de costas, o que prenuncia sua evasão logo no início da trama.

O ritmo da narrativa também é excelente. Shiko tem de lidar com a técnica da montagem paralela, pois o enredo se divide entre os raptores de Thuga e o grupo que segue em seu encalço. Isso é importante, visto que a busca de Piteco é a afirmação de sua individualidade, pois ele está disposto a contrariar as escrituras para mudar o destino e recuperar sua amada. Isso é representado magistralmente na cena em que o herói parte com Beleléu em outra direção que não a dos retirantes (p. 19). No momento em que aborda o êxodo de Lem, aliás, Shiko retoma os padrões utilizados para retratar a realidade “sertaneja” na adaptação que ele fez para O quinze, de Raquel de Queiroz. Principalmente em certo uso das cores, a respeito do qual falarei a seguir.
Em certos trechos (p. 14, 20, 42), quadros mais largos, horizontais, colaboram com o andamento suspenso do tempo. Na extensão ampla destas cenas mora o espaço futuro a ser explorado. Em dados momentos, este mesmo recurso pode tornar a perseguição mais tensa (p. 44), ou enfatizar as habilidades de combate de um personagem, ao situar, de uma só vez, muitos inimigos ao redor de um único herói (p. 29-30). Nas cenas iniciais de diálogo (p. 18), ou em pausas ao longo da trajetória (p. 32), vários quadros menores identificam os personagens que parlamentam, aprisionando-os em requadros pequenos que combinam com o sentimento de insegurança e separação que vivenciam. Por isso que, quando Piteco revela que Beleléu irá com ele, dois quadros formam uma mesma imagem em que o caçador enlaça seu amigo com o braço. O grupo ainda está cindido, mas o clima de união está presente. 




Entre outros acertos do quadrinista, destaca-se o ponto onde as Aves do terror chegam, no qual as onomatopeias se confundem com as árvores, num indício gráfico do som tomando tudo ao redor (p. 39). Ao retratar as criaturas fantásticas, Shiko as obriga a romper com a quarta parede, já que o ímpeto e seu tamanho descomunal exigem que elas saiam do quadro (p. 48-49). Este recurso vem associado com a coloração do álbum, também feita por Shiko, e, ao lado da adaptação O mágico de Oz, já analisada neste blog, e das aventuras da Batwoman dos Novos 52, é o melhor uso de cores que vi em quadrinhos em 2013. O artista usa aquarela e, fazendo isso, atualiza alguns elementos importantes da teoria das cores.
John Ruskin explicou certa vez que, enquanto a forma é absoluta, a cor é relativa, ou seja, está livre das convenções estruturais que identificamos nos objetos. Além disso, a cor dentro do desenho é uma metonímia, parte significativa de um todo semântico, geralmente social/psicologicamente orientado. A teoria da cor, em muitas de suas manifestações teóricas e em obras paradigmáticas da metade do século XX em diante, insiste na impossibilidade de haver um equivalente verbal para a sensação colorida, reflexão que pode ser vista na obra de artistas como Bruce Nauman, Joseph Kosuth e até mesmo em certas passagens de Em busca do tempo perdido. Contudo, em 1954, Pierre Francastel afirmou que a cor é uma testemunha das concepções dos seres humanos a respeito do ambiente em que vivem. Além disso, desde os impressionistas (e antes deles, em Goethe) a cor passou a ser a matéria inicial da pintura moderna, cuja autonomia foi defendida por nomes do porte de Cézanne, Gauguin e Matisse (cada um com seus interesses em particular). Em Ingá, a coloração é uma forma de lidar com o nordeste na sua polivalência mítica e folclórica, que é narrada aqui por intermédio de uma paleta variada. 

Neste trabalho de Shiko a cor é uma forma de eloquência, que carrega uma ética essencialmente etnológica, mas que se redefine em algo novo, criado pela atuação da cor em nosso imaginário. Como disse certa vez Bachelard, “Diante de tal produção de uma nova matéria, que reencontra por uma espécie de milagre as forças colorantes, cessam os debates sobre o figurativo e o não-figurativo. As coisas não são mais apenas pintadas e desenhadas. Elas nascem coloridas, nascem pela ação mesma da cor” (p. 27).
A cor, pensando na estética de Guatarri, também pode ser uma forma de objetivar conceitos a partir dos fenômenos artísticos. As cores terrosas marcam os diaspóricos personagens de Lem (p. 19), estratégia já utilizada por Shiko em O quinze, onde a mesma paleta representa a influência telúrica sobre os personagens. Na primeira cena em que vemos o povo de Lem ouvindo a história de sua origem, o vermelho e o laranja nas tochas que alguns seguram é a manifestação material do poder transformador e da energia do grupo que irá empreender a viagem. E não é à toa que, na última cena antes do rapto de Thuga, uma chama minguando seja mostrada (p. 13). Mais do que isso, na última cena do álbum, duas fogueiras zelam o futuro promissor do casal. A cor é material e sensação, envolvendo-nos nos afetos da trama. O mesmo amarelo consome o tigre gigante que surge ao final do enredo. O amarelo da impressionante criatura, desenhada em página inteira (p. 66), se filia à tradição dos amarelos de Van Gogh, visto nos girassóis expostos por ele em 1888. Ela está encarnada em nossa experiência pregressa e passa por uma rearticulação que ameaça o eu do leitor. Curto-circuita o sujeito, como todo bom uso da coloração pode fazer, já que ela é sempre transcendente, ainda que se relacione com objetos estabelecidos em nosso imaginário. Ela escapa da forma, mas permite que reconstituamos aparatos formais antes vistos por nós. Por exemplo, quando o tigre surge, o amarelo não está só. Ele dialoga com o vermelho de sua própria ameaça, o vermelho que marca o chão, mas que também compõe as roupas de Piteco e do “vilão” ao fim. Assim, a cor ajuda a afixar uma experiência na memória para, a qualquer momento, subvertê-la.




Uma cor bem empregada fortalece nossa potência de ver. E nos envolve por ser sempre fugaz e instável.  Isso Shiko explora com as formas, seja na quebra da quarta parede mencionada anteriormente, seja na natureza mística dos seres apresentados. Um evento cromático é uma forma de atenção, cria um campo da atuação do ser na obra. O requadro não pode conter a cor, Shiko sabe disso. Veja-se o vermelho na página 57. O azul do céu servirá de contraste com a coloração avermelhada do Anahaguera, como que nos lembrando que a natureza não é apenas harmonia. O próprio tigre varia (68-69) em função da luz, pois a cor é uma dos fenômenos onde melhor incide o movimento da percepção para a representação, cabendo à imaginação unir a sensação ao conhecimento de mundo, seja ele criativo ou simplesmente imitativo (algo feito muito hoje em dia pela moda e pela publicidade).
É com este repertório genial que Shiko dá novo fôlego a um dos mais conhecidos personagens de Maurício de Souza, produzindo, no percurso, um mito de fundação do nordeste e do espaço latino-americano como um todo. Ao terminar de ler Piteco: Ingá tem-se a sensação de que um artista maduro se estabelece entre nós. Solidário com seus novos fãs, Shiko publicou em paralelo o quadrinho independente O azul indiferente do céu. Em breve, analisarei ele aqui no Pato, mas já adianto que, assim como esta aventura pré-histórica, é uma das melhores coisas lançadas no Brasil em 2013.

Autor: Daniel Baz

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