Piteco:
Ingá
é o último álbum lançado pelo impecável projeto Graphic Msp, coordenado por
Sidney Gusman. Nele, o excepcional artista paraibano Shiko adapta a história
de Piteco e seus companheiros, Beleléu, Ogra e Thuga mediante uma narração
mítica a respeito do nordeste. Com este inutito, o quadrinista parte das inscrições esculpidas na Pedra do
Ingá, misterioso monumento arqueológico no agreste da Paraíba.
A história começa mostrando os símbolos
da pedra, enquanto os recordatórios contam a origem do povo de Lem. Estes são,
na verdade, o relato oral de um de seus sábios, que ensina a tradição aos seus
conterrâneos em uma página dupla funcional ao enaltecer o espírito comunitário do local. A
transição é genial, pois partimos dos signos da pedra, que não evocariam
sentido algum se vistos de forma autônoma, apenas para entender sua real
dimensão dentro da comunidade apresentada a seguir. Ao se referir ao espaço-tempo
mítico, por intermédio deste personagem, Shiko está legitimando a estrutura de
sua obra, visto que ela estabelece uma origem para o povo nordestino. A
aventura tem início com o êxodo do povo de Lem, que deve se mudar por causa da seca e cuja jornada já é prevista pelas inscrições ancestrais. Em paralelo, Thuga, a sacerdotisa
deste povo, é raptada pelos homens-tigre, o que obriga Piteco, seu amigo
Beleléu e, logo depois, Ogra, a partirem em busca dela.
Na caracterização dos personagens, Shiko
já revela o domínio gráfico que possui. Na primeira aparição de Piteco, por
exemplo, ele aparece imponente em um plano americano frontal, mas levemente
inclinado e com os braços caídos ao lado do corpo. Isso garante nossa simpatia
imediata, já que revela humanidade e a bidimensionalidade que um herói complexo
necessita. Além disso, a postura do herói aqui complementa a pose mais
agressiva em que ele aparece em uma das capas internas da obra. Beleléu, por
sua vez, é desenhado desengonçado e de olhos arregalados (p. 16), enquanto Ogra
surge mal encarada, armada e com a mandíbula projetada para frente. Thuga, no
entanto, é desenhada com certa sensualidade, vista geralmente de perfil ou de
costas, o que prenuncia sua evasão logo no início da trama.
O ritmo da narrativa também é excelente.
Shiko tem de lidar com a técnica da montagem paralela, pois o enredo se divide
entre os raptores de Thuga e o grupo que segue em seu encalço. Isso é
importante, visto que a busca de Piteco é a afirmação de sua individualidade,
pois ele está disposto a contrariar as escrituras para mudar o destino e
recuperar sua amada. Isso é representado magistralmente na cena em que o herói
parte com Beleléu em outra direção que não a dos retirantes (p. 19). No momento
em que aborda o êxodo de Lem, aliás, Shiko retoma os padrões utilizados para
retratar a realidade “sertaneja” na adaptação que ele fez para O quinze, de Raquel de Queiroz. Principalmente
em certo uso das cores, a respeito do qual falarei a seguir.
Em certos trechos (p. 14, 20, 42), quadros
mais largos, horizontais, colaboram com o andamento suspenso do tempo. Na
extensão ampla destas cenas mora o espaço futuro a ser explorado. Em dados
momentos, este mesmo recurso pode tornar a perseguição mais tensa (p. 44), ou
enfatizar as habilidades de combate de um personagem, ao situar, de uma só vez,
muitos inimigos ao redor de um único herói (p. 29-30). Nas cenas iniciais de
diálogo (p. 18), ou em pausas ao longo da trajetória (p. 32), vários quadros
menores identificam os personagens que parlamentam, aprisionando-os em
requadros pequenos que combinam com o sentimento de insegurança e separação que
vivenciam. Por isso que, quando Piteco revela que Beleléu irá com ele, dois
quadros formam uma mesma imagem em que o caçador enlaça seu amigo com o braço. O
grupo ainda está cindido, mas o clima de união está presente.
Entre outros acertos do quadrinista,
destaca-se o ponto onde as Aves do terror chegam, no qual as onomatopeias se
confundem com as árvores, num indício gráfico do som tomando tudo ao redor (p. 39).
Ao retratar as criaturas fantásticas, Shiko as obriga a romper com a quarta
parede, já que o ímpeto e seu tamanho descomunal exigem que elas saiam do
quadro (p. 48-49). Este recurso vem associado com a coloração do álbum, também
feita por Shiko, e, ao lado da adaptação O
mágico de Oz, já analisada neste blog, e das aventuras da Batwoman dos Novos 52, é
o melhor uso de cores que vi em quadrinhos em 2013. O artista usa aquarela e, fazendo
isso, atualiza alguns elementos importantes da teoria das cores.
John Ruskin explicou certa vez que,
enquanto a forma é absoluta, a cor é relativa, ou seja, está livre das
convenções estruturais que identificamos nos objetos. Além disso, a cor dentro
do desenho é uma metonímia, parte significativa de um todo semântico, geralmente
social/psicologicamente orientado. A teoria da cor, em muitas de suas
manifestações teóricas e em obras paradigmáticas da metade do século XX em
diante, insiste na impossibilidade de haver um equivalente verbal para a sensação
colorida, reflexão que pode ser vista na obra de artistas como Bruce Nauman,
Joseph Kosuth e até mesmo em certas passagens de Em busca do tempo perdido. Contudo, em 1954, Pierre Francastel
afirmou que a cor é uma testemunha das concepções dos seres humanos a respeito
do ambiente em que vivem. Além disso, desde os impressionistas (e antes deles, em
Goethe) a cor passou a ser a matéria inicial da pintura moderna, cuja autonomia
foi defendida por nomes do porte de Cézanne, Gauguin e Matisse (cada um com
seus interesses em particular). Em Ingá,
a coloração é uma forma de lidar com o nordeste na sua polivalência mítica e
folclórica, que é narrada aqui por intermédio de uma paleta variada.
Neste
trabalho de Shiko a cor é uma forma de eloquência, que carrega uma ética
essencialmente etnológica, mas que se redefine em algo novo, criado pela
atuação da cor em nosso imaginário. Como disse certa vez Bachelard, “Diante de
tal produção de uma nova matéria, que reencontra por uma espécie de
milagre as forças colorantes, cessam os debates sobre o figurativo e o
não-figurativo. As coisas não são mais apenas pintadas e desenhadas. Elas nascem
coloridas, nascem pela ação mesma da cor” (p. 27).
A cor, pensando na estética de Guatarri,
também pode ser uma forma de objetivar conceitos a partir dos fenômenos
artísticos. As cores terrosas marcam os diaspóricos personagens de Lem (p. 19),
estratégia já utilizada por Shiko em O
quinze, onde a mesma paleta representa a influência telúrica sobre os
personagens. Na primeira cena em que
vemos o povo de Lem ouvindo a história de sua origem, o vermelho e o laranja
nas tochas que alguns seguram é a manifestação material do poder transformador
e da energia do grupo que irá empreender a viagem. E não é à toa que, na última
cena antes do rapto de Thuga, uma chama minguando seja mostrada (p. 13). Mais do
que isso, na última cena do álbum, duas fogueiras zelam o futuro promissor do
casal. A cor é material e sensação, envolvendo-nos nos afetos da trama. O mesmo
amarelo consome o tigre gigante que surge ao final do enredo. O amarelo da
impressionante criatura, desenhada em página inteira (p. 66), se filia à
tradição dos amarelos de Van Gogh, visto nos girassóis expostos por ele em
1888. Ela está encarnada em nossa experiência pregressa e passa por uma
rearticulação que ameaça o eu do leitor. Curto-circuita o sujeito, como todo
bom uso da coloração pode fazer, já que ela é sempre transcendente, ainda que
se relacione com objetos estabelecidos em nosso imaginário. Ela escapa da
forma, mas permite que reconstituamos aparatos formais antes vistos por nós. Por
exemplo, quando o tigre surge, o amarelo não está só. Ele dialoga com o
vermelho de sua própria ameaça, o vermelho que marca o chão, mas que também compõe
as roupas de Piteco e do “vilão” ao fim. Assim, a cor ajuda a afixar uma experiência
na memória para, a qualquer momento, subvertê-la.
Uma cor bem empregada fortalece nossa
potência de ver. E nos envolve por ser sempre fugaz e instável. Isso Shiko explora com as formas, seja na
quebra da quarta parede mencionada anteriormente, seja na natureza mística dos
seres apresentados. Um evento cromático é uma forma de atenção, cria um campo
da atuação do ser na obra. O requadro não pode conter a cor, Shiko sabe disso.
Veja-se o vermelho na página 57. O azul do céu servirá de contraste com a
coloração avermelhada do Anahaguera, como que nos lembrando que a natureza não
é apenas harmonia. O próprio tigre varia (68-69) em função da luz, pois a cor é
uma dos fenômenos onde melhor incide o movimento da percepção para a
representação, cabendo à imaginação unir a sensação ao conhecimento de mundo,
seja ele criativo ou simplesmente imitativo (algo feito muito hoje em dia pela
moda e pela publicidade).
É com este repertório genial que Shiko
dá novo fôlego a um dos mais conhecidos personagens de Maurício de Souza,
produzindo, no percurso, um mito de fundação do nordeste e do espaço
latino-americano como um todo. Ao terminar de ler Piteco: Ingá tem-se a sensação de que um artista maduro se
estabelece entre nós. Solidário com seus novos fãs, Shiko publicou em paralelo
o quadrinho independente O azul
indiferente do céu. Em breve, analisarei ele aqui no Pato, mas já adianto que, assim como esta aventura pré-histórica, é
uma das melhores coisas lançadas no Brasil em 2013.
Autor: Daniel Baz
Massa o texto, mas Shiko é paraibano
ResponderExcluirCorrigido!
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