A HQ de Magno Costa, Mary, tem apenas 34 páginas e 33
quadros. Sim, com exceção de uma página dupla milimetricamente pensada, todos
os demais quadros ocupam a extensão completa da folha. Dessa forma, o autor
exige um olhar mais apurado do leitor e empresta uma carga simbólica mais densa
a cada imagem demonstrada, principalmente devido ao fato de Mary não ter texto.O enredo é
aparentemente simples. Uma mulher é acusada de bruxaria e será queimada em
praça pública por aldeões conservadores e furiosos. No ato punitivo,
empreendido pelo protagonista masculino (típico herói trágico que, por
intermédio de uma falha, perderá a posição de prestígio que tem), a feiticeira
aparentemente lança uma maldição que afeta a todos no lugarejo.
Apesar da simplicidade do plot, é na condução da história que Mary apresenta uma qualidade narrativa
incomum. O primeiro quadro mostra, de um plano inferior, os galhos sombrios das
árvores, cujo caminho levam à casa da bruxa. Nenhuma figura humana é vista.
Estamos em terreno selvagem e isso evidencia a dualidade (enfatizada também pelo
uso do P&B) da bruxaria, que consiste em tomar as rédeas das forças
naturais em prol de interesses pessoais.
A seguir, a única página dupla
do álbum apresenta a frente da casa da acusada. Mais uma vez, a ausência de
cores garantem o ar sombrio do cenário, assim como a largura do enquadramento
intensifica o mistério de seu interior. O leitor está prestes a adentrar em um
mundo desconhecido e antipático. Apesar disso, o desenho da acusada é genial,
pois mostra uma mulher cabisbaixa e visivelmente fragilizada. Pega de surpresa,
uma de suas mãos segura as costas da cadeira, enquanto a outra repousa
inofensiva sobre um prato vazio. Contudo, ao redor da sala, há um contorno
negro que recorta a figura feminina indiciando sua verdadeira natureza.
A história começa, portanto,
com uma invasão de domicílio privado e esta conduta estará presente também na
resolução da história, onde a tragédia coletiva e as decisões tomadas em espaço
público é também um drama familiar e íntimo. Durante a cena da queima da bruxa,
é mantida a representação inofensiva da misteriosa mulher, especialmente na
página em que ela surge prostrada em segundo plano atrás dos punhos cerrados do
povo que a condena. Em vários pontos, a página da esquerda dialoga de forma
interessante com a da direita, não necessariamente apenas dando sequencia a
trama, mas complementando o sentido exposto na cena anterior. Isso ocorre, por
exemplo, no momento em que o homem e a bruxa se encaram, ou quando as mãos dos
aldeões que rezam são retratadas como lanças ameaçadoras contra a face
demoníaca da acusada.
A bíblia, no momento da
execução da pena, aparece aberta e com as páginas viradas para o personagem que
a lê de frente para o leitor. Não vemos sua face. A palavra religiosa no seu
ícone mais poderoso e sumário retorna ao fim, no velório dos filhos da
autoridade, mas, dessa vez,podemos a face de tristeza do religioso e o livro
sagrado que ele segura já não tem mais a mesma força, destituído inclusive de
título. O fogo opressor nas tochas que queimam a mulher também surge agora
domado nas velas que ardem em primeiro plano ao lado do cadáver das crianças.
O chão aparece em Mary em apenas dois quadros. Na cena da
morte do gado, representando a consciência dura da realidade maléfica que
assola o povoado, e na página final, em que um ângulo superior narra o derradeiro
êxodo do vilarejo, adensando, mais uma vez em bases concretas, a desgraça. Bachelard
em dois livros excepcionais explica como as imagens relacionadas ao solo formam
dois sistemas, um que se relaciona com os devaneios da vontade outro que remete
ao sonho do repouso. O autor ao erradicar o solo de praticamente toda sua trama
e desenhá-lo unicamente nos dois exemplos citados nega as duas saídas aos
aldeões que desafiaram a bruxa. A terra se associa com a morte e com a derrota
representada pela fuga e pela desmotivação.
No restante do álbum, por sua
vez, os personagens são vistos geralmente em planos italianos, do peito para
cima, nos quais o solo nunca é mostrado, o que intensifica a efemeridade da
existência e situa os conflitos no espaço do inefável e
do transitório. O drama, portanto, é social, visto que Costa segue a tradição
das obras que vem no mal uma forma de renovação do status quo. O signo da transformação rege a última imagem do
trabalho e marca a derrota das pessoas que desafiaram um mal que não
compreendiam e, como o autor não permite que elas falem, sua tragédia torna-se
ainda mais intensa, porque jaz eternamente dentro de si.
Autor: Daniel Baz