sábado, 31 de março de 2012

5º Videocast: Especial Dia dos bobos

Olá leitores, devido à data desta vez vamos homenagear aos bobos da nossa literatura. Aí vai a legenda:

  • 00:22 – Apresentação;
  • 01:26 – 1ª Parte: Lazarilho de Tormes;
  • 03:23 – Uma definição de picaresco;
  • 05:14 – Trecho lido;
  • 06:14 – Outro trecho lido;
  • 07:00 – O anti-herói por necessidade;
  • 08:50 – Tom Jones, Henry Fielding;
  • 09:50 – Dialética da malandragem;
  • 11:51 – 2ª Parte: 3 Bobos;
  • 12:26 – Isaac Bashevis Singer;
  • 18:55 – Bertolt Brecht;
  • 27:22 - Clarice Lispector;
  • 33:12 – Previsões para o futuro do Pato Fáustico!



Obrigado por assistir!

Um bobo, uma alma boa e uma inocência pisada

Existem personagens ingênuos na literatura. Mesmo na literatura moderna que aprendeu a assumir certa ironia na relação com seus conteúdos, ainda existem seres, cujo comportamento idiota, imbecil, estúpido, ignorante obrigam que nos envolvamos com seus problemas e torçamos por seu sucesso, ainda que não mereçam. Neste dia 01/04, o Pato fáustico apresenta três exemplos de protagonistas “bobos”, personagens cuja indefensável capacidade de serem enganadas estrutura os enredos das histórias.
Nenhuma das representações do ingênuo na literatura me comove mais que a feita por Isaac Bashevis Singer. Um dos grandes nomes da literatura ocidental e um dos maiores contistas do século XX, tendo morrido no segundo ano de sua última década. O polonês escreveu seus primeiros trabalhos em iídiche, que aos poucos foram traduzidos para o inglês, com sua ativa participação. Este é o caso do conto que nos interessa: Gimpel, o bobo. Exemplo máximo de conto de caráter, em que a personalidade escolhida para o herói determina todos os acontecimentos do enredo.
Gimpel é o bobo da cidade. Todos lhe enganam e se divertem com isso. Logo no início da história uma “brincadeira” o leva a se casar com Elka, mulher divorciada, viúva e fedorenta com quem o protagonista terá seis filhos em 20 anos. Ao final do conto, as muitas traições por parte da mulher culminam com a morte dela e um pedido de desculpas seguido da revelação de que nenhum de seus filhos era de Gimpel.
No texto de Singer, como nos demais aqui presentes, o caráter bobo da personagem, fácil de ser lograda, está associado à pureza de seus sentimentos. Como resume o trecho em que, ao aconselhar-se com o rabino, este lhe diz: “Está escrito, melhor ser bobo todos os seus dias que ser mau por uma hora. Você não é bobo. Eles são os bobos.” (18) No caso de Gimpel, o fato de este contar a própria história é necessário para esta conclusão. Logo no início, o personagem revela-se incrédulo com algumas brincadeiras, mas prefere não frustrar e irritar os escarnecedores. É também sua narração que permite que tenhamos acesso aos momentos em que Gimpel titubeia no limite da raiva e da vingança, incentivado por um espírito do mal, mas decide nada fazer.
Neste ponto, fica clara uma das grandes propriedades de Singer, a de desbravar as contradições de uma cultura tradicional judaica em contato com a modernidade ocidental. Assim, aqui também o personagem é dúbio, complexo, e temos acesso a uma complexidade que os demais personagens jamais terão. A primeira fase do texto põe a personalidade do herói em ambiguidade e atesta a diferença de nossa relação de leitor com Gimpel e da sua relação entre ele e sua comunidade: “Eu sou Grimpel, o bobo. Não acho que eu seja bobo.” (17). A negação da alcunha é uma negação da própria história, pois esta recebe o título que o titular renega. Duas narrativas existem em paralelo no conto. Uma pertence à doxa, à opinião do coletivo e que legitima toda a série de eventos artificiais que compõe o enredo. A outra narrativa é aquela que Gimpel não pode contar, a narrativa do eu.
Gimpel enquanto narrador estabelece uma ruptura entre o narrador arcaico e o narrador do capitalismo pós-industrial (como descrito por Walter Benjamin). Sua história deve ser diferente da experiência coletiva para se afirmar como narrativa autêntica. O cosmos da massa dissolve a emergência da experiência do narrador. No limite da ficção, que possibilita um espaço para o “eu” ser, e da ficção que envolve o que a sociedade legitima, uma deformação irrompe e já falaremos dela. Antes precisa ficar claro que o conflito do narrador é intradiegeticamente exposto quando Gimpel, ao fim do conto e longe de Frampton, sua terra, passa a contar as histórias, muitas delas inventadas, para as crianças do local. A institucionalização narrativa do sujeito é precisa, ainda que no fim de sua existência o que permite que o sujeito descubra que não há fato inverídico, mas tudo o que é contado é de alguma forma real.
A deformação a que me referi anteriormente envolve tudo isto e está relacionada com a teoria do conto ocidental. O gênero sempre se estabeleceu, nas suas bases mais essenciais, a partir de sua extensão. O conto é uma narrativa curta e por isso teve que explorar uma série de técnicas de efeito contido, das quais as mais recorrentes são as unidades (tempo, espaço, etc). O assunto de Gimpel, o bobo, pensado desta perspectiva é um anti-conto. O tempo é muito extenso e o espaço carece de unificação. A única esfera que lhe dá unidade é o caráter, ou seja, é a personalidade definida em poucas bases do protagonista que parece unificar a amplitude conteudística da experiência informada pelo conto. A história dilui uma experiência ampla na técnica da contensão e esta forma esquizofrênica (onde os significantes não possuem significados estáveis) é resultante da ambiguidade do caráter que guia a história. Ingênuo é quem lê.
Nosso segundo caso, transita na esfera do teatro e será analisado a partir da peça A alma boa de Setsuan, de Bertolt Brecht. Esta mostra como a prostituta Chen Te – a história se passa na China – compra uma pequena tabacaria, com o dinheiro dado por três deuses que, ao vir à terra, encontram na figura da heroína a única alma boa do lugar, visto que somente ela lhes dá abrigo. Após a fortuna da mulher, toda a cidade passa a explorar sua bondade e sua posição elevada, o que faz com que ela se travista de homem, criando Chuí Ta, seu duplo, seu primo.
Como no exemplo acima, bondade, ingenuidade, inocência andam muito próximas e são o cerne de uma severa crítica às relações humanas no capitalismo. A peça é escrita dentro do grande projeto brechtiano do teatro épico, cuja questão central resume-se na tentativa de questionar e denunciar a ilusão da representação no palco teatral. Desconstruir o teatro demonstrando os mecanismos por trás de si é um meio para o projeto de expor as vísceras do mundo capitalista. Entender os artifícios da mimese dramática ensina o afastamento crítico ao público que, de alienado, passa a participar ativamente do produto artístico, pois sua posição é incorporada também às possibilidades de significação. Atitude revolucionária diante da passividade conservadora tradicionalmente exigida ao espectador teatral.
Entender a peça enquanto encenação, e compreender suas estratégias expressivas poderiam assim, introduzir o sujeito na história, pois este se relaciona com um mundo de arbitrariedades passível de transformação. Não há lado de lá do palco, tudo é cena e exige participação. Isso é feito, por exemplo, desnudando os componentes cênicos, deixando refletores à vista e todos os outros aparatos técnicos que produzem os efeitos pretendidos. O que estimula o espectador a reconhecer a origem das estratégias discursivas a que está submetido. Tornar-se, então, consciente da produção dos objetos.
A questão do épico é complementar. Aqui o adjetivo refere-se ao tratamento dos assuntos públicos (em contraposição do dramático, que se envolve de matéria privada).  Além disso, reforça o distanciamento já que o épico envolve sempre uma voz de fora que narra a história de alguém, ocorrida geralmente no passado. A emoção já está diluída em uma visão externa, o que favorece a instalação do ponto de vista crítico. Muitos são os momentos em que as personagens de Brecht narram à platéia o que lhes aconteceu. No caso de A alma boa de Setsuan, isso acontece em muitos momentos como a fala inicial de Wang, no prólogo, e o momento em que Chen Te conta o que lhe aconteceu após a visita dos deuses, no início do primeiro ato (69). O drama, por sua vez, dá-se em tempo presente, o que envolve de imediato a platéia e dificulta sua reflexão. Só abandonando estas estratégias pode-se entender as determinantes sociais das relações inter-humanas, que no teatro épico já não são mais o centro da intriga. Uma técnica complexa que envolve até mesmo a atuação dos atores, o que já foge de nosso enfoque.
Na peça de que tratamos tal mecanismo é evidenciado, por exemplo, quando o segundo Deus desmascara Wang o aguadeiro ao revelar que o copo usado pra medir a água que ele lhes serve tem fundo falso (62). Assim, um componente cênico (copo) é racionalizado internamente na cena, o que conscientiza a platéia para os demais itens usados.  O que é enfatizado quando Wang, dirigindo-se a platéia, questiona se os deuses não teriam notado o truque. (65) O copo também funciona como alegoria para as relações humanas, que carecem de consistência. Outras cenas essenciais são aquelas em que Chen passeia com o filho (144-145), que ainda não nasceu, e pede à platéia que dêem abrigo à criança; quando narra aos ouvintes boa parte da cena vivida na fábrica e no final, como falaremos a seguir.
Chen Te usa o disfarce de Chuí Ta para fazer tudo aquilo que sua personalidade não conseguiria, mas que é essencial para sobreviver no modo de vida capitalista. Usa esta lógica para controlar Sun, personagem por quem se apaixona, e desenvolve a tabacaria explorando os demais. Mas é o quiproquó, a mudança de sexo e  de personalidade que apesar de remeter a Shakespeare, revela uma nova forma de encarar o humano. Trata-se do processo de desmontagem e montagem do indivíduo, que já em Homem é homem pode ser percebida em sua forma acabada.  Além de se contrapor ao drama tradicional, que investia numa conduta estática de caráter do herói, já que a “falha” da bondade de Chen Te é substituída e depois se reveza com sua capacidade de ser fria e dura, o artifício explora a conduta na sua função e na sua integridade. Neste último caso, como em Gimpel, ela nunca pode ser legitimada a não ser dentro do próprio eu.
Dentro desta fase de Brecht o enredo até que se resolve de forma não muito radical, mas a última cena é mais um manifesto do teatro épico já que deixa ao público a tarefa de resolver o problema:

“Para este horrível impasse, a solução no momento
Talvez fosse vocês mesmos darem trato ao pensamento
Até descobrir-se um jeito pelo qual pudesse a gente
Ajudar uma alma boa a acabar decentemente...
Prezado público, vamos: busque sem esmorecer!
Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver! (185)

Uma Clarice isolada, afastada da família e lutando contra o câncer concebe um dos textos mais emblemáticos do desenvolvimento romanesco da literatura brasileira, além de essencial pra que entendamos um terceiro tipo de personagem ingênua e boa da literatura. Falamos de Macabéa, protagonista de A hora da estrela. Clarice já declarou em entrevista à TV cultura de 1977 que a história de sua miserável protagonista seria a de uma “inocência pisada”. Vejamos como o texto pisa nesta inocência.
A história se estrutura em duas camadas. A primeira, delas funciona em metalepse com a segunda a emoldurando e conferindo-lhe sentido. Espaço discursivo em que o narrador Rodrigo S.M. organiza uma segunda história, esta sim de Macabéa, cujo percurso culminará na “hora da estrela” do título. Neste engenho narrativo, a primeira pessoa (Rodrigo) e a terceira pessoa (Macabéa) são simultaneamente produzidas em espaços que nunca se cruzam. Por trás do narrador “que na verdade é Clarice Lispector”, como diz a dedicatória, está a figura autoral e isso é fundamental para que entendamos a construção da desgraçada nordestina.
Macabéa é uma das tantas personagens femininas que desde seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, terão suas identidades investigadas e problematizadas pela narração. Acontece que aqui a identidade ficcional esta diluída nas muitas camadas textuais que funcionam de forma encaixada. Este encaixe sinaliza para o caráter montado do texto, e funciona realçando seus artifícios técnicos, o que é essencial para a percepção do aspecto “alegórico” (Eduardo Portella) e paródico da nordestina. Esta se situa na contramão de toda a obra da escritora, guardando semelhanças com a vertente neo-realista do romance brasileiro que, com força na década de 30, explorou o universo social que contextualiza Macabéa. Mas aqui este universo aparece para ser desconstruído.
Dois tempos se contrapõem, o psicológico de uma consciência criadora, Rodrigo, e o cronológico de um objeto inconsciente do enredo, Macabéa. A ingenuidade desta última é  homóloga ao enredo unilateral e insuficiente que a emoldura. O esforço de Clarice está em propor o fracasso legítimo da forma que, ao pesquisar uma existência, produz duas: a que investiga e a sua negação. O acabamento irônico do romanesco, como desde Quixote, no mínimo, sustenta no duplo o movimento coerente da intriga. A “boba” Macabéa exige uma rede de relações linguísticas que explicite sua condição, mas isso força o artifício do gênero. De sua personalidade, fica a também paródica compaixão que sentimos por um ser que, ao morrer, mata a narrativa, isto é, mata nossa necessidade de sermos irônicos. 

BRECHT, Bertolt. Teatro completo em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
SINGER, Isaac  Bashevis. 47 contos de Isaac Bashevis Singer. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

domingo, 18 de março de 2012

4º Videocast: Experimentando na Literatura contemporânea


Olá queridos leitores! Esse é o 4º videocast do Pato Fáustico, e a temática de hoje contempla alguns autores que andam experimentando na literatura contemporânea. Esperamos que gostem. Aí vai a legenda:

  • 00:22 -  Apresentação e definição do assunto;
  • 01:25 – 1ª Parte: “A visita cruel do tempo”, de Jennifer Egan;
  • 02:25 – Alguns personagens;
  • 03:10 – Muitas possibilidades do gênero romanesco são exploradas;
  • 05:50 – Trecho lido: frases intercaladas;
  • 06:49 – Trecho lido: segunda pessoa do discurso;
  • 08:32 – Power Point e romance;
  • 09:35 – A questão das experimentações;
  • 12:15 – 2ª Parte: “Nada me faltará”, de Lourenço Mutarelli;
  • 14:53 – O romanesco e o dramático;
  • 17:24 – Mais uma vez, finou-se o Pato...  :]
  • 18:41 – Intertexto 1: “O estrangeiro”, de Albert Camus;
  • 19:19 – Intertexto 2: Foucault;
  • 20:21 – Mostrar  X  Dizer;
  • 22:30 – 3ª Parte: “Uma viagem à Índia”, de Gonçalo Tavares;
  • 24:49 – Definição de epopeia;
  • 26:15 – Versos não-metrificados;
  • 27:17 – Narrador ativo: metanarração e digressão;
  • 27:50 – Trecho lido;
  • 28:35 – O tempo.



Divirtam-se! E após, comentem! : ]

Jennifer Egan e a forma cruel


A visita cruel do tempo, que deu o Pulitzer de ficção (2011) à Jennifer Egan, põe a questão do realismo na literatura mais uma vez em pauta. Nele acompanhamos 50 anos da sociedade norte-americana, impossíveis de serem resumidos, mas guiados por personagens como Lou, um figurão do mundo da música e escroto assumido; Bennie, guitarrista punk, cujo grande feito foi descobrir os Conduits; Bosco, guitarrista da banda descoberta; Sasha, secretária de Bennie; Scotty, guitarrista da antiga banda de Bennie, e que será responsável por um dos tantos momentos em que indivíduo e sociedade formam uma comunhão na prosa norte-americana; entre muitos outros.
Apesar da forte carga de envolvimento gerada entre os leitores e estes personagens, todos eles são um delicioso pretexto para que Jennifer Egan mostre toda sua virtuose no domínio das técnicas narrativas do romance. Um esforço que permite um panorama estrutural das muitas possibilidades assumidas pela forma romanesca ao longo de seu desenvolvimento e seus variados graus de aceitação. Temos todos os tipos de narradores, em primeira, terceira e até um exercício de segunda pessoa. O tempo não segue cronologia, organizando-se ao sabor da necessidade semântica do texto. Mas o que é mais impactante no trabalho da autora é a múltipla experimentação discursiva, a partir do uso de diversos códigos e estilos de escrita, que permitem acessar as múltiplas experiências dos seres que compõem este mundo ficcional. Vamos a eles.
O livro começa convenientemente com a tradicional terceira pessoa para nos apresentar Sasha, cleptomaníaca secretária de Bennie e que frequenta constantemente sessões psicanalíticas com Coz. Juntos eles perseguem o objetivo de recriar suas histórias, no intuito de curá-la. Muitas cenas passadas contadas por Sasha são intercaladas à terapia, numa forma de vincular seu temperamento doente à sua identidade narrativa. Além disso, o olhar é externo, pois trata Sasha de forma clínica, introduzindo o tópico das patologias psíquicas que acompanharão muitas das personagens, como Bennie e Rhea. No caso do segundo, apresenta-se um prisma complementar ao de Sasha, pois Bennie também tem um complexo e deseja curá-lo. O complexo: uma estranha impotência aparentemente sem razão. A cura: beber café e... ouro.
Rhea será a narradora no terceiro capítulo. A mudança para a primeira pessoa aqui é fundamental, pois neste momento conheceremos toda a geração da década de setenta que irá desembocar com seus projetos e fracassos cinqüenta anos depois no final diacrônico do livro. É importante que os conheçamos de dentro, pois a limitação focal estabelece a incompletude, a ausência de totalidade que este grupo irá representar numa alegoria da sociedade americana dos últimos anos (impossível não pensar em Jonathan Franzen, voltaremos logo a esta comparação)
Depois de mais uma série de mudanças de foco, que será muito entediante continuar resumindo, chegamos ao capítulo nove, que narra a entrevista da atriz Kitty Jackson, dada ao jornalista Jules Jones. Neste ponto, o grotesco e o cômico dominam o tom da narrativa, pois, imitando uma típica entrevista de revista (com o hilário título “Um almoço em quarenta minutos: Kitty Jackson revela tudo sobre amor, fama e Nixon!”), Jules Jones tentará estuprar a célebre estrela. Outro artifício eficaz deste capítulo é atingido a partir da excessiva intercalação de frases, pouco usada até este momento da trama. O recurso investe, primeiramente, na hesitação do sujeito em conflito com o que irá ser confessado, mas também sinaliza para a tensão interna ao próprio discurso, pois racionaliza um momento de perda de razão. Basta notar como mesmo no ataque em si, o narrador não perde a retórica contida e cerimoniosa (e, por isso, farsesca) que uma entrevista desse tipo suscita (178).
A dificílima segunda pessoa é usada no capítulo 10 “Fora do corpo”, em que a voz narrativa se dirige a Rob, amigo de Sasha, personagem central desta etapa: “Seus amigos estão fingindo ser todo tipo de coisa, o seu dever é chamar sua atenção quanto a isso”, assim começa o capítulo. Não sabemos se é uma instância discursiva superior que se dirige a Rob ou se é ele mesmo, e essa dúvida faz parte da indefinição identitária do personagem. Ele é meio gay, ele meio que ama Sasha e seu trajeto termina num suicídio no mar meio estimulado, meio ao acaso. O foco aqui preenche uma necessidade existencial, tentar absorver o eu de fora, mas mantendo sua centralidade.
Antes de terminar o livro, Egan ainda irá nos presentear com um acertado capítulo narrado por Alison, filha de Sasha, cuja intimidade é expressa a partir de uma seleção de 76 slides, como num PowerPoint. Mais uma vez a escolha do código é eficaz. Primeiro, pois, com naturalidade, somos introduzidos a lógica de sua mundivivência. Os slides também são um tipo de linguagem fragmentada, cheia de espaços e que funcionam análogas à obsessão do irmão de Alison, Lincoln. Este, passa seu tempo procurando e interpretando as pausas de músicas como “Foxy Lady”, de Jimmy Hendrix e “Young americans”, de David Bowie.  A leitura lacunar de gráficos e tabelas e a estranha coleção de pausas do irmão reforçam a incompletude de um texto que exige que interpretemos seu silêncio.
Bem... Todos estes recursos inserem o livro de Jennifer Egan em duas discussões.  A primeira é mais local, norte-americana por excelência e busca o lugar da autora numa prosa dividida entre as narrativas que decretam sua insuficiência, na linha de Thomas Pynchon e os realistas que tem por trás de si a tradição do século XIX e depois de si, contemporâneo a Egan, nomes como Jonathan Franzen. Neste ponto, A visita cruel do tempo parece uma tentativa de síntese das duas vertentes. Preocupa-se em expor valores humanos, usando técnicas inovadoras o suficiente para agradar o público e para manter a proximidade ente ele e a função comunicativa do texto. O interesse desinteressado de Kant, pois notamos as espertezas da ficção, mas não conseguimos deixar de nos emocionar com seu universo imaginário.
 Um livro que aposta na insuficiência da forma, buscando alternativas, que, pelo grau de estranheza, enfocam o caráter ilusório da narrativa; mas também o incorpora à tentativa de representar a naturalidade criando uma situação paradoxal que introduz a segunda discussão. Esta, referente à literatura de toda parte e tempo, representa toda a ênfase experimental, traduzida pelos impasses dos movimentos modernistas. Toda obra com esta orientação, deve impor a autonomia de seus processos construtivos, negando com isso qualquer semelhança fundamental com organizações funcionais vistas como naturais no interior de realidades sociais historicamente determinadas. A crítica é externa, à organização da realidade, e também interna, à naturalização da percepção artística.
As formas naturalizadas são o depositário da ideologia dominante, ou seja, onde ela se afirma com mais violência. Por isso, a arte pode investir de forma contra-ideológica, e o faz desvelando seu próprio processo de produção. Tal atitude investe na relação fetichisada com o mundo, que impede que o sujeito apreenda os fatores de produção das formas, e aliena daquilo que determina os sentidos. Mas em a visita cruel do tempo este complexo é muito ambíguo. Pensemos no capítulo do PowerPoint, o mais impactante do livro. Trata-se de um código ainda não convencionalizado pela literatura, mas amplamente legitimado pela cultura. Assim, para criticar a sociedade atual, a narrativa adota um ponto de vista interior da sociedade, e popularizado em sua lógica, o que dilui um possível paradoxo, para converter o texto de Egan num texto realista tradicional, à moda de Dickens e Balzac.
Por isso, também foi fundamental a explanação inicial dos tipos de narradores do livro. Ora, o narrador, originalmente, é a identidade da experiência da história. É ele que permite a continuidade e a articulação. Contamos com sua presença nos defendendo do caos. Mas intimamente também contamos que ele saiba quem somos e entenda que não nos contentamos sempre com o mesmo. Narrar em PowerPoint não é uma impertinência, pois narramos nossas historias nele. Estamos muito mais perto do narrador arcaico de Benjamin do que poderíamos supor, pois se trata aqui da experiência coletiva representada através da tecnologia coletiva.
É também uma reafirmação do canibalismo romanesco. Tudo que lhe serve é por ele incorporado em sua adaptação pela sobrevivência. Principalmente depois dos anos 60, no mínimo, a noção de realismo precisa se alargar. Se realismo é identificação com o real, numa sociedade regida pela lógica mercadológica a arte é uma forma-mercadoria. Jennifer Egan está ciente disso e transita no limite da vanguarda, ainda realista até os ossos. O tempo também é cruel com as formas, a sua aprendeu a esconder as rugas.

EGAN, Jennifer. A visita cruel do tempo. Rio de Janeiro. Intrínseca, 2011.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

Outra viagem à Índia


A epopeia já foi dada como morta há muitos anos, muito em conta do revival que sofreu no início da modernidade com exemplares como O paraíso perdido, Os Lusíadas, ou A canção de Rolando, e – no caso brasileiro – O Uraguai. Textos que já subvertiam alguns dos elementos originais da forma. Depois de perder o posto de embrião do romance, a partir de uma série de inegáveis pesquisas históricas, o gênero saiu de uso até que Gonçalo Tavares, português que tem prezado pela audácia de seus projetos ficcionais – vide a coleção “O bairro”- voltasse a escrever uma epopeia em bom português em 2010, ou seja, 438 anos depois dos Lusíadas.
Dez cantos que narram uma viagem de um Lisboeta pela Europa (Inglaterra e Paris) até chegar à Índia. Dito assim parece um projeto tradicional e, por isso, anacrônico, mas o resultado é uma inversão paródica do modelo convencional. A começar pelo motivo da viagem. O herói, Bloom, viaja em busca de sabedoria e esquecimento, procura uma mulher para esquecer outra (155). Está também atrás de tédio (48) e seu percurso descreve o paradoxo que só o gênero epopeico poderia criar.
O principal choque ao saber que estamos diante de um exemplar do gênero, refere-se às mudanças técnicas e temáticas empreendidas pela estrutura do texto de Tavares. O que não podemos esquecer é que tais adaptações genéricas são comuns em outros casos de epopeias em língua portuguesa. Começando pelo intertexto mais direto aqui, Os Lusíadas, em que se tem, em alguns episódios, a perda do caráter epopeico clássico. Basta relembrar o relato lírico em primeira pessoa de Adamastor, além do episódio de Inês de Castro, e teremos alguns bons exemplos. Além disso, no Brasil, tem-se o árcade O Uraguai, que investe na modernização do gênero, começando por diminuir sua extensão, além de também investir no caráter lírico de certas passagens – vide a célebre morte de Lindóia.
Os versos metrificados da narrativa, usados para garantir a inalterabilidade do narrador que deve diluir tudo na harmonia do relato, e que pode garantir a solenidade do assunto ou a eloqüência de sua exposição, como no decassílabo, também são abandonados. A livre metrificação explora as múltiplas possibilidades do ser. Os múltiplos ritmos interiores que o indivíduo assume, além de ajudar a construir um dos temas fundamentais da obra: a impossibilidade de resgatar-se a unidade do mundo epopeico. A medida estática dos versos da epopeia tradicional serve também para garantir a inalterabilidade da narração e do mundo narrado, algo que não ocorre aqui.
Afinal, outro fenômeno estranho ao gênero, refere-se justamente à aquisição de um espaço para a voz narrativa, que aqui não só se manifesta como uma entidade ativa (como na tradição de Tristam Shandy), mas também é uma entidade detentora de “um projeto pessoal cheio de perversões” (319). Daqui resulta uma tensão evidente entre o “organismo interior” que é Bloom e a voz que lhe narra. O livro possui, em muitos trechos, um caráter aforismático decorrente disso, o que envolve as situações particulares do herói com uma série de postulados morais, éticos e filosóficos que o circundam. Mais do que isso, a instância narrativa aposta na ênfase na forma, isto é, em como a história é contada, num andamento digressivo e metanarrativo que só diminui a importância da fábula.
O tempo é outra subversão à parte. Diferente dos relatos tradicionais, na epopeia de Bloom o passado é fundamental na disposição anímica do herói. Sua transformação é antes interna. “Quero primeiro chegar à Índia por dentro” (228), diz ele, e, diferente do herói clássico, sua dimensão interior e a mudança de seu temperamento estão intimamente relacionadas à passagem do tempo. Auerbach, por exemplo, no seminal Mimesis afirma que a ausência de interioridade, de sentido temporal, e de campos semânticos obscuros caracteriza a épica homérica. Além disso, os personagens desta experimentam fenômenos que ficam apenas no plano sensorial. Aqui também Bloom subverte traços característicos do gênero. O herói português carrega uma angústia individual que o distancia dos demais homens e ela só existe na experiência qualitativamente distinta do tempo e do espaço. O homem é o que é porque foi um outro em algum momento. Bloom não é exclusivamente presente, como Aquiles, mas vive inclinado para o que será e condicionado pelo que já fez.
 Quando finalmente volta da Índia, a única prova de que lá esteve é uma edição do Mahabharata, epopeia que narra os feitos da dinastia dos Pândavas. A partir de sua história representa-se a essência do povo hindu e explora-se a harmonia entre o plano divino e o mundano. Mas no retorno, a epopeia de Bloom já é outra:

“Não procurou proezas extraordinárias,
Porque viveu o suficiente para perceber
As várias epopéias que existem
Num só dia de Inverno onde o tédio
E o frio empurram levemente o homem para a janela.
Imobilidade como epopéia ínfima,
Eis o que descobriu já depois de estar cansado.” (434)

O que não deixa de representar uma geração de homens contemporâneos como fica claro no trecho:

“E a minha vida é apenas uma especialização
 do continente onde fui infantil e adulto –
 disse Bloom”

A lógica capitalista amolda a postura alienada de Bloom e mesmo a alegoria cultural que se pode extrair dele insere-se no plano das especializações. Além da epopeia hindu, Bloom também carrega um rádio que pertenceu a seu pai. A cosmovisão de mundo comunitária e a individual em intenso conflito a partir daquilo que o herói carrega.
      O livro termina com um irônico apêndice intitulado “Melancolia contemporânea: um itinerário”, onde tenta-se definir a trajetória de Bloom a partir de palavras-chave como “coragem”, “medo”, “cidade”, etc. Mas a multiplicidade de termos sinaliza contra a possibilidade de organizar a experiência do protagonista. Diferente do Ulisses, de Joyce, o itinerário não estrutura a fábula, mas a desintegra. A viagem epopeica do herói contemporâneo começa abandonando a confiança nos mapas.

TAVARES, Gonçalo M. Uma viagem à Índia. São Paulo: Leya, 2010.

Autor do Texto: Daniel Baz dos Santos

O que não falta em Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli


Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli, começa quando Paulo Mutarello retorna sozinho para sua casa, após ter sumido por um ano com sua mulher e filha. O texto segue a rotina do protagonista, enfatizando a estranheza de seus amigos e familiares pelo fato de ele não se lembrar de nada, nem conseguir sentir tristeza ou culpa. Principalmente, devido à confusão temporal em que ele se encontra.
Ele não sentiu o tempo passar e tem a impressão de ter se ausentado por algumas horas apenas. Ao descobrir que perdeu a mulher, parece que seu casamento nunca aconteceu e que sua vida conjugal fora algo adiado para um futuro hipotético e distante. O protagonista chega a pensar se tudo não é uma previsão, isto é, que ainda iria se casar e ter filhos, ou mesmo se não seriam os outros que avançaram no tempo, como revela durante uma sessão de psicanálise (26). Por não ter sentido o tempo passar, não sente também falta das pessoas  e, como Mersault, esta frieza irá causar a desconfiança dos demais, num jogo de enigmas que beiram o policial. Mas não é pela estranheza misteriosa e enigmática do texto de Mutarelli que estamos falando dele. Introduzimos a obra aqui devido à sua escolha estilística principal. O romance é contado somente com diálogos.
Assim, estamos no limite entre dois adjetivos ficcionais, o dramático e o romanesco. O dramático preza pelo imediatismo da ação e, para um sujeito que age como se não houvesse passado um dia sequer - após sua ausência de um ano -, o procedimento é certeiro. A presentificação absoluta do eu e de suas ações, decorre não só da temática exposta, mas do artifício usado.
A ênfase na voz dos seres também ajuda a manter o mistério do que teria realmente acontecido e se manifesta de forma mais radical quando os personagens deixam de completar informações(62), ou nos relatos orais que não chegam a lugar nehnum em inúmeras sessões de psicanálise. O comportamento lacunar do discurso oral é ativamente manifesto quando o protagonista pede ao seu psicanalista: “Então, doutor. Interprete o meu silêncio” (65), pedido que se estende a nós, leitores, também.
As lacunas também estão presentes nas inúmeras reticências usadas em muitos trechos do livro. As reticências são insuficiências da linguagem. É o momento em que o texto admite a (ou usufrui da) insuficiência do signo e exige que procuremos explicações externas ao texto. Complementares a elas, são os espaço em branco que entremeiam os diálogos, geralmente marcando mudanças espaciais, mas que visualmente representam a ausência de postulados semânticos seguros, que também refletem, obviamente os espaços incompletos na mente de Paulo.
Mas talvez o aspecto mais inquietante de Nada me faltará, decorrente da organização em diálogos, seja a exclusividade do “mostrar”, em detrimento do “dizer”. Aquele, iguala a temporalidade de leitura com a temporalidade da história e sua forma mais pura é o diálogo. Este, acelera a narrativa, pois escolhe só o essencial a ser contado, tendo como forma mais plena o resumo. Assim, no livro de Mutarelli tudo é essencial e lemos as cenas na mesma velocidade (ou chegamos bem perto disso) em que elas acontecem. Se nada é acessório, então tudo significa. Nada nos é escondido. Num caso como esse em que, mesmo assim, terminamos o livro sem possibilidades seguras de sentido, subverte-se a lógica da narrativa. Desconfiamos de sua formatação, ainda que ela seja a única ponte entre nós e a proposição de seu mundo. Em Nada me faltará, felizmente, falta tudo que nos garanta verdades finais.

MUTARELLI, Lourenço. Nada me faltará. São Paulo. Companhia das Letras, 2010.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

quinta-feira, 8 de março de 2012

3º videocast: Pato Fáustico de morte!

Olá leitores, aproveitem o programa, hoje ele está "de matar"!!! : ]

  • 00:22 - Apresentação;
  • 01:12 - 1ª Parte: Daytripper;
  • 05:24 - A linguagem da HQ;
  • 09:05 - Intertexto com Brás Cubas;
  • 09:56 - 2ª Parte: A máscara da morte rubra, de Edgar Allan Poe;
  • 12:25 - O tempo;
  • 13:32 - O espaço;
  • 14:12 - Revelações sobre o enredo!
  • 15:43 - Pato degolado! : )
  • 15:57 - 3ª Parte: As intermitências da morte, de José Saramago;
  • 18:00 - Romance de tese;
  • 20:54 - 4ª Parte: Álvares de Azevedo;
  • 25:10 - "No dia seguinte ninguém morreu."

Obrigado por assistir!

quarta-feira, 7 de março de 2012

A morte como base da existência em quatro casos impertinentes


A culpa é de Heiddeger. O ser humano é ser para o fim, isto é, para a morte. Diferente dos demais animais, que simplesmente cessam de viver, o homem morre, e sua consciência permite que a morte seja um dos tantos atributos de sua existência. Viver assim é uma antecipação da morte, que se configura paulatinamente como a possibilidade irreparável da impossibilidade do ser. Por isso, o sujeito convive com uma negatividade que lhe é constitutiva, visto que ele nunca é totalmente, pois existe formulado pela presença de sua própria finitude. Esta ainda não aconteceu, mas condiciona tudo que se refere ao eu. Desta forma, o ser é constituído pelo momento em que deixará de ser. Ele é feito do nada que se produzirá ao fim de sua trajetória. O ser só pode ser o “aí” (dasein), pois estabelece este aí como prenúncio de um acolá (sua morte). Dizer que sou “aí” introduz a negatividade no ser, pois limita suas possibilidades de existir fora do “aí”.
Pois bem... Na Teogonia, Zeus, após as núpcias com sua irmã Deméter, que gera Perséfones, consegue o equilíbrio entre as pulsões dos vivos e a possibilidade da morte, que aqui também já aparece enquanto latência. Deméter é a deusa ligada à terra e sua fecundidade e se associa a Hades e ao escuro território do mundo dos mortos, fazendo circular e aflorar as forças nutrientes da vida. O ciclo vital tem como propulsor as vitaminas recicladas pela morte.
Dois exemplos distantes no tempo que tratam, também de forma diversa, da morte como imanência da vida, isto é, do ser vivente. A cultura, como não pode deixar de ser, não se absteve de tratar deste complexo. No que se refere à ficção, há inclusive a necessidade da narrativa para: (a) adiar a morte (As mil e uma noites); (b) evitá-la (Decamerão); (c) exaltá-la (Romantismos em geral); ou (d) fazê-la risível, como entre nós Manuel Bandeira, ou como o poemeto de Nabokov:

“Um silogismo:
os outros morrem.
Mas eu não sou outro;
assim, não morrerei.”

Porém, não foi da literatura que partiu o mote aqui discutido, mas da recém lançada HQ Daytripper, que será nosso texto introdutório para analisar algumas obras literárias que usam a morte como motivo básico para sua confecção.
A obra-prima dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá é um dos melhores exemplos recentes de como uma linguagem diferenciada (e bem empregada) pode inovar dentro de temas já amplamente trabalhados. Resumindo a história – o que em trabalhos desta qualidade é sempre um sacrilégio -, esta conta alguns dias na vida de Brás de Oliva Domingos, dias que representam uma mudança definitiva em sua existência. O que diferencia Daytripper de um relato “costumista”, do tipo “poesia no cotidiano” (como Umbigo sem fundo, por exemplo), é que, ao fim de todos os capítulos – cujos títulos geralmente referem-se às idades de Brás –, o protagonista morre.  Morre para aparecer vivinho de Oliva Domingos na página seguinte. No início do volume, ainda no paratexto, há a pertinente micro-descrição das duas linhas que habitam os quadrinhos, realismo e fantasia. Temos o realismo do cotidiano, ou seja, a naturalidade de uma vida simples, mas vista pela fantasiosa presença diegética da morte, que se manifestará muitas vezes durante a história.
A estética dos quadrinhos se encaixa de forma perfeita na proposta. Esta envolve a síntese expressiva de palavra e imagem, isto é, dentro de cada elemento mínimo de significação (quadro), temos um código sequencial (língua) e outro simultâneo (imagem). O resultado final, porém, conforme Will Eisner já expressou, é uma arte sequencial que narra a partir do encadeamento dos quadros, num processo semelhante à montagem cinematográfica (com a diferença de que a velocidade da leitura é determinada pelo leitor e que os quadros são estáticos). Obviamente há exceções, quadrinhos exclusivamente feito de imagens como Gon, de Masashi Tanaka, mas estes fogem ao comum.
Esta característica configuradora dos quadrinhos permite que vislumbremos, como nunca antes feito, o trajeto do sujeito em direção à morte. Trajeto este constituído por aquilo que lhe aconteceu e aquilo que poderia ter sucedido, pelo que lhe ocorreu de forma simultânea e pelas escolhas sequenciais que definem um ser diferente do que poderia ter sido. A morte aqui é, antes de mais nada, uma maneira de propor sentido, de estabelecer uma síntese do sujeito. A história de Brás não se manifesta apenas no sintagma, mas no paradigma das múltiplas escolhas e suas consequências que só significam quando o herói encontra a morte e podemos finalmente tentar interpretá-lo(a). Elementos sincrônicos e sucessivos que, de forma sincrética, definem a identidade do ser: quadrinhos puro.
Em Daytripper, a morte é um fim, mas também um ritual de passagem. Na sua manifestação mais superficial, revela os diversos “eus” que compõe o sujeito. A negatividade da morte está brilhantemente expressa, pois já que ela não coincide com o fim narrativo, permite que percebamos como ela habita o ser na forma de sua máxima negação, na pele de sua possível impossibilidade. E seu sentido só pode ser alcançado a partir da síntese ativa de sua presença-ausência múltipla, em cada fase da vida de Brás. “Esta é a história da minha vida”, diz ele, “Respire fundo abra os olhos e feche o livro”, no manifesto do que acabamos de dizer.
O começo do volume, a primeira morte de Brás, permite que vejamos o apuro técnico dos dois criadores. O herói aparece fora de nível, com o corpo inclinado, sobre um fundo avermelhado em um quadro retangular que ocupa todo o final da página. Se estivermos atentos, repararemos que abaixo do quadro há uma mancha escarlate no seu terno, que a seguir se revelará um imenso esguicho de sangue. O tom cromático do fundo rima com a mancha sanguínea, que, pela expressão no rosto do sujeito, o surpreendeu. No quadro seguinte, ele ainda está surpreso-chocado e dentro de um enquadramento mais afastado, mas de um ângulo semelhante, que revela o cenário de um bar. Ele continua deslocado do centro do enquadramento, num artifício básico para demonstrar alguém que busca um eixo, neste caso, existencial. Logo se compreende que a posição inferior do primeiro quadro, a descentralização do ser e a rima entre o sangue e o fundo efetivam um impasse existencial. A morte chega abrupta, mas o código tem todo o tempo do mundo para apreciá-la. O fato do plano do segundo quadrinho estar mais afastado é o prenúncio do olhar clínico que será empreendido pela narrativa acerca deste sujeito, o que permanecerá na narração em terceira pessoa que resume todas as mortes de Brás.
Falando da parte escrita, ela também é primorosa. Brás trabalha como escritor de obituários e não raras vezes o discurso assumirá também esta função, o que nos aproxima, pela empatia, com o herói. As mortes são narradas em tom impessoal contrastando com nossa expectativa, mas fiel à lógica cotidiana de Brás. Alguns balões são fundamentais para a composição da identidade das personagens. Quando desconfiamos do amigo de Brás no capítulo 7, o rabicho dos balões (aquela parte que liga o balão à personagem que fala) tem contornos trêmulos e acidentados, revelando a perda da razão do sujeito (páginas 172 e após). O ruído nos quadrinhos também é exclusivamente visual e cito um caso de seu uso aqui. A onomatopéia “bang”, na primeira morte de Brás, por exemplo, não só situa o disparo da arma, mas reforça a banalidade do acontecimento, através da sonoridade batida do signo. (inteligente e discreto. Principalmente se lembrarmos que os quadrinistas brasileiros não têm tradição de explorar os signos onomatopaicos – Ziraldo sendo uma exceção).
Os espaços são múltiplos. Abertos e fechados. Íntimos e coletivos. Coloridos e sombrios. Oníricos e realistas. Afinal, a vida precisa destes múltiplos vieses para contrastar com o espaço mortuário que é sempre um só, apesar de representado por diversas situações. Estes espaços são tratados por uma quadrinização nada ingênua.
Nas mortes de Brás, por exemplo, são extremamente significativos. Os fins dos capítulos, que coincidem quase sempre com os fins do herói, são narrados, na maioria das vezes, em planos afastados do protagonista (em somente um, sua mão aparece no primeiro plano, mas o foco da cena é justamente o segundo plano), predominantemente gerais (abrangendo seu corpo e ao redor dele), deixando de evidenciar o sujeito, para apreender algo maior do que ele. O quadro que mostra o mar, o que mostra os caminhões, o que mostra a janela de sua casa vista de fora (em angulação inferior, o que só adensa o afastamento) e o plano geral final do protagonista diante do mar, estão todos compostos desta forma.
Em alguns casos, como nas páginas 112-113, há o uso do quadro em duas páginas. Aqui é expresso o espírito de aventura infantil em um enquadramento retangular e que segue na página seguinte refletindo a inconsciência dos limites e o alargamento da experiência temporal. Fato inclusive representativo desta morte, simbolizada pela mão dentro do quadro e o corpo implícito ausente. Em outro exemplo, no enterro do pai de Brás (92-93), também há um quadro superior retangular que continua na outra página, desfamiliarizando o ritmo natural de leitura e impregnando a percepção de um tempo quantitativamente diferente. A presença da morte na escolha da largura do quadro. Coisa fina. Outro exemplo magistral encontra-se na página 25. O melhor amigo de Brás afirma “[...] a morte é parte da vida meu amigo”. Ambos estão em uma esquina (local bifurcado significativo por natureza) e do outro lado, à nossa esquerda, apenas um espaço em branco, o abismo das possibilidades de sentido.
O tempo é um caso a parte. Nada cronológico, está impregnado de sentido. Vimos Brás moço sucedendo ao velho sem respeito à ordem natural das coisas e devemos conviver com inúmeras temporalidades não só as retratadas, como a textual e a imagética. O início do capítulo 10 é uma covardia. Acompanhamos o parto de Brás, que, a essa altura já sabemos ter tido a complicação de uma queda de luz durante o processo, e de repente as páginas são todas pretas, com o diálogo entre os médicos e a parturiente. Alguém diz “Acabou doutor”, este responde “deixe-me mostrar”, e ao virar a página vemos Brás com 76 anos tendo um tumor diagnosticado. Nunca saberemos a qual cena pertence o diálogo. Mais uma camada de sentido a ser multiplamente avaliada.
Daytripper está repleta de outras sutilezas, que rendem páginas e páginas de análise. Mais um exemplo? O céu azul, no capítulo da infância de Brás que aos poucos, na viagem de volta, vai sendo substituído por um céu com fios, que terão tanta importância no desfecho desta parte. Sem falar nas referências, como o nome Brás (Brás Cubas, né), ou o cachorro Dante. Mas sua força está em representar a morte como um artefato composto pelos nossos atos e que nos define enquanto indivíduo. Além disso, morrer é um dispositivo narrativo. Fechamos um sentido, mas a narrativa segue adiante. Com qual Brás ficaremos? A vida e a morte se relacionam na complementação mútua de significação. Assim será nos textos literários dispostos a seguir.
Em 1842, Edgar Alan Poe, um dos grandes responsáveis pela maneira como hoje nos relacionamos com o macabro, com o mistério, com o sobrenatural e com a morte, publicou, pela primeira vez, “A máscara da morte rubra” no Graham`s Lady`s and Gentleman’s Magazine. A história inicia-se descrevendo a tal “Morte rubra”, peste mortífera cujo sintoma principal seria manchas vermelhas espalhadas pelo corpo. A explanação da doença liga-se à determinada recorrência cromática que produzirá o aparato visual mais explícito da trama, como veremos. Este é um espectro do conto. O outro se debruça sobre a figura do Príncipe Próspero, que após perder metade dos habitantes, reúne damas e cavalheiros sadios e se refugia numa abadia “fortificada” e “fartamente provida”. Lá, todos vivem alheios às catástrofes de fora, em um eterno clima de diversão. O narrador estabelece o binômio temático “Lá dentro, tudo isso e segurança. Lá fora, a ‘Morte rubra’”.
Após o intróito, o ponto inicial do conflito se estabelece: “Foi quase ao término do quinto ou sexto mês de sua reclusão, enquanto a peste raivava mais furiosamente lá fora, que o Príncipe Próspero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras da mais extraordinária magnificência” (282). O trecho é repleto de eficácias discursivas. A começar pela dupla indecisão de seu início. Primeiramente, na indefinição do período exato do mês “toward the close”, no original.  A abstração do tempo vivido é fundamental para a significação diferenciada que o tempo terá durante a mascarada. Além disso, a imprecisão por via da instância narrativa contrastará com a contensão simbólica do tempo da festa. A passagem do tempo anterior é banal, não significativa para o efeito final da história. Entretanto, a escolha não é apenas de ordem conteudística, mas também estritamente formal, já que Poe está garantindo a unidade de tempo fundamental para o gênero em que está escrevendo.
Consequentemente, depois de descrever os salões em que ocorrerá a mascarada, que preza pelo simbolismo das cores, o narrador realça o relógio de ébano “gigantesco”, cujos toques de uma em uma hora obrigavam a orquestra a parar e “perturbava” a alegria dos salões. Quanto a estes, são sete, de cores distintas. O sétimo, único em que as cores da vidraça diferiam das do aposento, era preto com janelas vermelhas e a luz de fora emprestava a ele uma cor escarlate que afugentava os mascarados. Pelo espaço, Poe já revelou a intriga. O retumbar do relógio que interrompe a festa, insere o tópico da negatividade, anuncia o cessamento dos atos humanos.
Eis que surge um conviva estranho, cuja fantasia era feita de mortalhas tumulares e manchada de sangue: a “Morte rubra”. O príncipe corre por todos os salões (cujos contornos encurvados metaforizam a existência do ser) em direção ao intruso e jaz apunhalado aos seus pés. Poe não deixa de mesclar, mais uma vez, a figura da morte á temporalidade do recinto, já que o vulto do mascarado “permanecia ereto e imóvel dentro da sombra do relógio de ébano”. Descrevê-lo desta perspectiva expressionista é postular o tempo como a matéria da morte. Aqui, mais uma vez ela surge como negatividade, ligada a impossibilidade do contínuo. Quando vasculham sua fantasia, nada há por debaixo. Seu aspecto humano deve ser temporário, pois, aqui, a morte é o duplo do homem. É tudo que ele evita ser. Como na solução de qualquer doppelganger, um dos dois deve ser anulado.
Além disso, tal artifício revela a necessidade do homem de nivelar a morte ao seu eixo de referências. Compor sua forma à semelhança dos homens é a percepção de um complexo imanente ao ser. Travestimo-la de nós na simulação de que a entendemos.
Outra forma de personificação da morte está em As intermitências da morte, de José Saramago. O tema inicial parte de mais uma das ideias (de tipo kafkiano) “o que poderia ser”, presente em outras obras do português, como Evangelho segundo Jesus Cristo, A jangada de pedra, História do cerco de Lisboa, O ano da morte de Ricardo Reis, entre outros. A saber: O que poderia ser se a morte encerrasse suas atividades. A reposta saramaguiana é um caos repleto de inversões. Moribundos não desencarnam, vivendo em agonia, funerárias vão à falência, crescimento populacional descontrolado e, para piorar, uma máfia que leva as pessoas até o outro lado do país (nunca identificado), visto que lá a morte continua na ativa.
O acerto de Saramago está em subverter a metafísica da morte, provando que ela é antes uma questão político-econômico-social. Como tudo no mundo aburguesado, a morte tem uma função específica na organização da sociedade e está totalmente integrada nas engrenagens da vida dos homens. Este tratamento está afinado com as escolhas narrativas de Saramago. Aqui, como na maior parte de sua obra, o autor preza pela clareza da exposição, pelo realismo (ainda que mágico) das situações, entrando na mesma dubiedade manifesta em Daytripper. A morte é negativa (sem concretude), mas também positiva (passível de ser quantificável, inclusive). A narração, também como em Daytripper e em Poe, se distancia do narrado, pois o painel, nesta primeira parte do texto é necessário à trama. A morte, antes de ser uma questão do indivíduo, é um problema comunitário.
Os principais traços estilísticos de Saramago também estão aqui, mas adquirem um valor diferenciado frente ao insólito tema. Seus parágrafos em bloco, que não deixam espaço em branco para os olhos, e os diálogos sem marcações, permitem que apreendamos tudo como uma totalidade, pois não há estratificação visível em ambas as categorias. Além disso, a pontuação naturalizada em vírgulas e pontos tem dupla função. Primeiro, enfatiza o lugar dos itens no discurso, já que a maneira como leremos as frases resulta da localização do léxico e não da substituição dos pontos. O discurso deve acomodar o material humano, assim como acontece intradiegeticamente. Além disso, vírgulas e pontos finais resumem as relações entre elementos ao essencial: relação de termos, sucessividade de ações e fim. A existência conturbada do homem diante da própria finitude já está expressa pelo repertório sígnico.
É uma pena que Saramago tenha terminado este livro, pois no momento em que a Morte resolve voltar a matar e se interessar por um violoncelista, o autor cai em todos os problemas que sua prosa já apresentara em alguns outros projetos. Clichês, personagens femininas artificiais (no caso, a própria morte) e a paulatina substituição da tese (pois os romances de Saramago sempre tentam provar uma tese) pelo sermão de pastor ingênuo (longe dos trechos inspirados em Vieira, também presentes em toda sua obra).
Mesmo assim, os problemas não o impediram de produzir uma frase genial na maneira como concebe, sozinha, o ímpeto da figura da morte na existência humana e na sua ficcionalização. E trata-se da primeira do romance: “No dia seguinte ninguém morreu”. Gramaticalmente não estamos no presente. A ação da morte é futura, apesar do verbo estar localizado no passado. O gramatical seria: “no dia seguinte ninguém morrerá”. Por intermédio do verbo “morreu”, a morte se localiza no fato passado, já na adjetivação da única marcação temporal expressa “dia”, sua ação se localiza no futuro. A narrativa vive esta dupla tensão no presente, isto é, a vive como presença, por conseqüência, como humanidade. Como na distentio animi de Agostinho. Experiência humana na tensão da negatividade, pois, como foi dito, a morte não existe enquanto presença, ela é a anulação das possibilidades do ser. Mas quando ela se ausenta, a ferida no contínuo é ainda mais cruel, pois sugere a possibilidade infinita do humano. Resta narrar e narrar é tentar atenuar a tensão do ser passado e do seu ser futuro, cuja única certeza é a morte. A frase deve iniciar o romance, pois do contrário perceberíamos que o narrador se posiciona no futuro dos fatos contados, o que atenuaria (ou anularia) o efeito.
Terminaremos com um brasileiro. Outra obra que mescla o ideal com o real na maneira como pensa a morte. Trata-se da obra de Álvares de Azevedo, em que a morte, antes de tudo, é uma das formas manifestas do individualismo romântico, que, entre nós, foi o maior artífice. O cadáver de poeta, o poeta morto é uma das tantas maneiras de diferenciar-se dos demais. Num dos primeiros poemas de Lira dos vinte anos com o sugestivo título “O poeta”, começa o eu-lírico:

Era uma noite - eu dormia
E nos meus sonhos revia
As ilusões que sonhei!
E no meu lado senti....
Meu Deus! Por que não morri?
Por que do sono acordei?

                Aqui, a morte surge como fuga da realidade. O sono, considerado irmão da morte desde Hesíodo, que permite que o sujeito habite seu mundo ideal, exige a morte como fecho, pois a realidade é dolorosa. O verso que introduz o tópico é introduzido por uma ruptura rítmica que obriga uma pausa após o vocativo “Meu deus!”. A possibilidade da morte exige esta pausa na reflexão, e que é também o sujeito sensível ao encerramento de sua existência. A rima precisa “senti” / “morri” é a presença léxico-sonora desta percepção.
           Um dos principais diferenciais de Álvares de Azevedo no tratamento da morte está no grau acentuado de intimidade de seus poemas que mesclam o cotidiano peculiar do eu às situações insólitas (bem próximo dos textos analisados anteriormente). O prefácio da segunda parte de Lira dos vinte anos é a exaltação do cotidiano, e sua representação a partir dos sentidos, da sátira, da prosa dos nervos, das fibras, das artérias.
          Por isso, a primeira imagem de poeta que aflora nesta etapa é justamente a do poeta morto, no poema miscelânea (á moda de Byron) “Um cadáver de poeta”. O poeta de um reino fictício, Tancredo, falecido, está fora dos sentidos, logo ausente da “tanta inspiração” do mundo. Assim, como acentuamos antes, morrer também é se distanciar (entenda-se diferenciar) do mundo, visto que a morte do poeta será ignorada pela sociedade que lhe nega enterro, pois “não valia a sepultura”.
          Diz o início do texto:


De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!



A carga temporal, que, como já vimos, é uma das principais transfigurações do sentido da morte na arte, estabelece um forte conflito entre os verbos em pretérito imperfeito e o presente simples “resta”. O imperfeito abusa das iterações, atos sem singularidade e que generalizam as ações do ser. A única ação particular “restar” introduz o único item seguro de identificação do poeta e presntificado, “morto”. A morte é um atestado de caráter e permite que, a partir dela, se estabeleça o conflito entre o eu e a realidade que o circunda. Mais uma vez, a morte está diretamente vinculada à possibilidade de postularem-se sentidos.
Outras são as maneira de tratar a morte empreendidas por Álvares de Azevedo. Em “Lembrança de morrer” é solene. Em “O poeta moribundo”, sexta parte de “Spleen e charutos”, é paródico. Porém, há outro aspecto referente à morte que importa ser lembrado na obra do poeta: sua biografia. Afinal, a morte de Álvares de Azevedo encena em nossa história da literatura o exemplo máximo da negatividade imanente ao ser. Criou-se ao redor do poeta a imagem do gênio interrompido, a morte sendo paradoxalmente o fim de suas possibilidades, mas também a legitimadora do artista como o conhecemos. Morrer na tenra idade não só é a expectativa interrompida do talento que não vingará, como também a validação do poeta que poderia ter sido. Nas histórias literárias a morte do sujeito é um interpretante, isto é, possibilita e condiciona as proposições de sentido. Não é raro perceber as dificuldades dos acadêmicos de considerar os autores vivos em muitas de nossas histórias da literatura e alguns não se furtam de interromper seu roteiro antes da geração vivente. Álvares de Azevedo é, assim, um caso emblemático de autor que tem na própria morte o corrimão exegético da academia. Morrer significa.


AZEVEDO, Álvares. Poesias completas. São Paulo: Saraiva, 1962.

MOON, Fábio; BÁ, Gabriel. Daytripper. São Paulo: Panini Books, 2011.


POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

sexta-feira, 2 de março de 2012

Pataquada: O conflito das representações em pan Apoleck


Isaac Bábel
Isaac Bábel é um mestre do conto ocidental. Considerado como “paradigma do século XX” por Boris Schnaiderman, o autor torna-se popular por ter mapeado as transformações da turbulenta Rússia da década de 20, fundamentalmente em seu livro O exército de cavalaria, ambientado na guerra russo-polonesa, onde atuou como correspondente. O autor injustamente já não goza de muita popularidade entre nós (apesar de, por exemplo, estar no centro de Vastas emoções, pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca) e quero me deter em um de seus contos menos famosos, onde está em plena forma.
Trata-se de "pan Apolek". Texto em que o narrador conta a história do sujeito que dá nome ao conto (pan, em russo, significa senhor), pintor diplomado que chega a Novograd e rapidamente recebe o encargo de pintar a nova igreja. Mais rapidamente ainda é acusado de sacrilégio por ter usado o rosto das pessoas do povoado para representar as cenas bíblicas. Se o delito ainda é considerado inofensivo, quando o padre se reconhece em um dos pastores retratados, torna-se herético no momento em que “Os cidadãos importantes, convidados pelo vigário, reconheceram Janek, o coxo convertido, no apóstolo Paulo, e em Maria Madalena a jovem judia Elka, filha de pais desconhecidos e mãe de muitas crianças abandonadas.” (43)
Após ser expulso da igreja, passa a oferecer suas habilidades a todos, podendo, por exemplo, pintar a Última Ceia, usando parentes e amigos dos fregueses e dando a Judas Iscariotes a face de seus inimigos. Dessa forma, quando uma comissão designada pelo bispo chega para conferir o ocorrido, vê que até os mais miseráveis da localidade estão canonizadas nas cenas eclesiásticas graças à transgressão do pintor. Ao fim do conto, o narrador está com Apolek, trinta anos depois da heresia, e ouve o velho contar uma nova versão da história de Cristo. Segundo o pintor, Cristo teria se compadecido de certa Débora, abandonada pelo noivo, e tido um filho com ela.
O texto de Bábel parte da pintura para discutir um dos centros conceituais da arte. Como libertar-se dos modelos da realidade e representar algo essencialmente criador? Além disso, como pretender que o artista elimine as referências contextuais que o envolvem em prol de atingir o efeito pretendido pela história narrada? Apolek cria um paradoxo quando tenta representar uma história lendária a partir de modelos cotidianos. Para falar com Northrop Frye, trata-se de misturar dois modos de imitação, o imitativo alto (seres superiores aos homens normais, lendários) com o imitativo baixo (seres ordinários). O conflito da representação não podia ter palco mais eficaz, afinal, o cosmos bíblico preza por um tipo de realismo que figura o homem histórico, presente no cotidiano (como Auerbach já mostrou no seu Mimesis). Por isso, se presta a este tipo de subversão, tendo o sujeito mundano no centro de sua concepção de humanidade. Os heróis bíblicos são sempre inferiores com relação às camadas que organizam o mundo, diferente dos heróis gregos que, em grande parte das vezes, descendiam do nível superior.
A repercussão intradiegética desta aporia representacional não podia ser diferente. O vulgo clama pela canonização imediata. Celebra sua face refletida nas lendas. Brota daí uma concepção de arte como dispositivo emancipacional do homem. Na ficção, a esfera inferior pode corroer a superior momentaneamente e subverter as categorias de classificação da realidade. Apolek, como artista, inventa uma versão da vida e parodia a oficial. Observa o mundo ao seu redor e o preenche do valor que melhor lhe aprouver. Seu melhor amigo na história é, inteligentemente, um cego. Um absorve tudo por intermédio de sua visão de mundo particular (que se confunde com a visão enquanto atributo sensorial do ser), o outro abdica involuntariamente dos modelos ao seu redor. Está claro, na história de Bábel, qual deles pode almejar o estatuto de criador.


BÁBEL, Isaac. O exército de cavalaria. São Paulo. Cosac & Naify, 2006.

 Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

Pataquada: O amor segundo Marçal Aquino

Um homem-narrador enlouquecido, tentando contar uma história de amor. Melhor, uma história de loucura, violência e absurdo que é a própria definição do amor, articulada por Cauby, protagonista de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino. O texto começa com a impossibilidade da comunicação: “Não adianta explicar. Você não vai entender.”. Trecho ambíguo que, se postula a impossibilidade do sentido, também estabelece um receptor explícito no texto, “você”, que, não sendo personificado, repercute no receptor. A figura do leitor tem seu papel assegurado, mesmo que a compreensão não seja garantida.
A incompreensão reside no complexo intrincado de acontecimentos da história relatada. O herói, fotógrafo, está numa cidade do Pará, no meio do conflito entre empresas e mineradores em busca de ouro. Mas também está numa pensão, depois da aventura vivida, dividindo o espaço, entre outros seres, com Altino, apelidado de careca, personagem que também relata uma história de amor vivida no passado.
A história de amor de Cauby começa quando este se interessa por Lavínia – mulher casada e ex-prostituta - por quem se apaixonará. Para ser fiel ao livro, tem-se que dizer que ele se sente atraído primeiro por sua fotografia e a incapacidade de conhecer-apreender o ser amado, assim como, a impossibilidade de distinguir entre ele e sua representação, irão determinar as situações vividas pelo casal. Estas começam pelo caráter profético do herói e da sua confiança nos astros (o casal mostra certo fascínio por astrologia). Mas é interessante notar que todos os pressentimentos iniciais tidos pelo narrador (como a morte do careca na página 21, ou a expectativa sobre quem bate a sua porta na página 58) são desmentidos pela narrativa, o que evidencia o sujeito entregue aos caprichos de um destino anunciado (pois o narrador sabe o que aconteceu), mas surpreendente (pois tudo ainda parece absurdo).
Além disso, a construção do texto revela uma história estagnada, que não permite mais a mudança de seus componentes, mas articulada por uma narração dinâmica, que, entre outros elementos, se sustenta em situações de suspense, quase policiais. Uma trama intrincada e às vezes rocambolesca para uma história fechada, imutável. Conflito que garante a tensão da personagem narradora, que apesar de todos os artifícios retóricos empreendidos, jamais poderá desviar o percurso de sua trajetória.
O cotidiano à beira do non-sense também decorre daí. Afinal, tudo parece ilógico para nós, que, diferente de Cauby, não sabemos o que pode estar por trás das atitudes e seres. Destaco, entre os absurdos da narrativa, o tatu Zacarias, herdado pelo narrador e que perdeu a capacidade de escavar. Mesmo ele, tem uma função precisa, pois representa o alquebramento do protagonista, principalmente ao fim do livro, além de simbolizar o desinteresse com as coisas da terra, vivido pelo narrador.
Mas um dos talentos mais evidentes de Aquino está na sua capacidade de intercalar cenas e histórias (seu livro O invasor também é uma obra-prima na construção de cenas e imagens que ocorrem sincrônicas). Ora, as cenas em paralelo servem para aumentar as possibilidades de sentido (como o menino rindo na página 44), podem também servir para salientar a situação das personagens (como o casal sorridente ao fundo, enquanto o careca conta sua história, na página 53). Contudo, os momentos mais impactantes são os inúmeros em que a prosa reveza-se entre do relato de Cauby e o de Altino, às vezes em momentos de extrema tensão, o que sugere a nivelação dos tempos presente-futuro, como ficará mais forte no (re)encontro que fecha a obra.
Outro momento intercalado está no longo trecho em que conhecemos o passado de Lavínia, a única parte do livro narrada em 3ª pessoa. Além disso, existe um outro texto subjacente ao enredo. O livro O que vemos no mundo, escrito pelo professor Schianberg e que serve de manual do protagonista nas questões do amor. É o único objeto, junto com sua câmera, que resiste a determinado incêndio localizado mais ao fim do texto. Há ainda, uma trama paralela envolvendo a guerra pelo ouro que irá causar a morte de um dos personagens principais.
No fim de tantos reveses, ficamos com a força de um amor sobrevivente, que resiste às inúmeras tramas paralelas e tempos narrativos como núcleo da história. Pois aqui ele também é uma doença contagiosa, sexualmente transmissível, um veneno que consome tudo. No caso narrativo, organiza tudo a partir de seu temperamento ilógico. O amor já está na negação da primeira frase. Elemento semiótico relacional do livro estabelece a não-necessidade e a não-causalidade como verossimilhança. No final, o narrador se permite outra interlocução, com seu receptor explícito “Você não teria esperança?” (229). Para deixarmos o livro em paz, temos que entender aqui uma brecha, o derradeiro ponto de fuga do amor segundo Marçal Aquino.


AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios. São Paulo. Companhia das Letras, 2005.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos